– Esta é uma história de um príncipe e de uma princesa.
– Outra história de príncipe e princesa? Puxa vida! Não há quem agüente mais essas histórias! Dá um tempo!
– Espera um pouco, ô! Você não sabe ainda como a história é.
– Ah, isso eu sei! Aposto que tem castelo!
– Ah, tem, castelo tem.
– E tem rei e rainha.
– Ah, rei e rainha também tem.
– Vai me dizer que não tem dragão!
– Bom, pra falar a verdade tem dragão!
– Puxa vida! E você ainda vem dizer que não é daquelas histórias chatíssimas, que a princesa fica a vida inteira esperando o príncipe encantado?
– Ah, vá, deixa eu contar. Depois você vê se gosta. Que coisa! Desde que o Osvaldinho inventou essa de "não li e não gostei" você pegou a mesma mania. . .
– Então tá! Conta logo, vai!
Era uma vez um castelo, com rei, rainha, príncipe, princesa, muralha, fosso em volta, ponte levadiça e um terrível dragão na frente da porta do castelo, que não deixava ninguém sair.
– Mas como não deixava?
– Sei lá. A verdade é que ele parecia muito perigoso.
E cada pessoa via um perigo no dragão.
Uns reparavam que ele tinha unhas compridas, outros reparavam que ele tinha dentes pontudos, um tinha visto que ele tinha um rabo enorme, com a ponta toda cheia de espinhos... Tinha gente que achava que ele era verde, outros achavam que era amarelo,. roxo, cor-de-burro-quando-foge. .. E saía fogo do nariz dele. Saía, sim! Por isso ninguém se atrevia a cruzar o pátio para sair de dentro das muralhas.
Mas o príncipe, desde pequeno, estava sendo treinado para sair um dia do castelo e correr mundo, como todo príncipe que se preza faz.
Ele tinha professor de tudo: professor de esgrima, que ensinava o príncipe a usar a espada; professor de berro. . .
– Professor de berro? Essa eu nunca ouvi!
– Ouviu sim. Nos filmes de Kung Fu, ou nas aulas de caratê os caras dão sempre uns berros, que é pra assustar o adversário.
Tinha aula de berro. Tinha aula de corrida, que era para atravessar bem depressa o pátio e chegar logo no muro... Tinha aula de alpinismo, que é a arte de subir nas montanhas e que ele praticava nas paredes do castelo; tinha aula de tudo quanto é língua, que era para quando ele saísse do castelo e fosse correr mundo pudesse falar com as pessoas e entender o que elas diziam... Tinha aula de andar a cavalo, de dar pontapés... Tinha aula de natação, que era para atravessar o fosso quando chegasse a hora, tinha aula do uso do cotovelo...
– Ah, essa não! Você está inventando tudo isso. Nunca ouvi falar em uso do cotovelo!
– Pois o príncipe tinha aula. Ensinavam pra ele a esticar o braço dobrado, com o cotovelo bem espetado e cutucar quem ficasse na frente.
E tinha aula de cuspir no olho... E ele até esfregava o joelho no chão, que é para o joelho ficar bem grosso e não machucar muito quando ele caísse. E ele aprendia a não chorar toda hora, que às vezes chorar é bom, mas chorar demais pode ser uma bruta perda de tempo. E quem tem que fugir de dragão, espetar dragão, enganar dragão, não tem tempo para ficar choramingando pelos cantos.
Enquanto isso a princesinha, irmã do príncipe, que era linda como os amores e tinha os olhos mais azuis que o azul do céu, e tinha cabelos tão dourados quanto as espigas do campo e que tinha uma pele tão branca como as nuvens nos dias de inverno...
– Branca como as nuvens no inverno? Por que no inverno? Não pode ser no verão?
– Ah, não pode, não. Nuvem no verão é nuvem de chuva. Portanto é escura. . .
– É, mas nos países frios, no inverno as nuvens são escurinhas. . .
– Olha, vamos parar com essas discussões que não levam a nada. No máximo encompridam o livro e ele fica muito chato. A pele da princesa era branca, pronto. E as mãos da princesa eram macias como... Ah, não importa. As mãos eram macias, os pés eram pequenos, e a voz da princesa era maviosa.
– Maviosa?
– É, maviosa, melodiosa! Eu sei que essa palavra não se usa mais, mas se eu não usar umas palavras bonitas, meio difíceis, vão ficar dizendo que eu não incentivo a cultura dos leitores.
– E o que é que a princesa fazia o dia inteiro?
– A princesa se ocupava de ocupações principescas, quer dizer, a princesa tomava aulas de canto, de bordado, de tricô, de pintura em cerâmica. A princesa fazia cursinhos de iniciação à poesia de Castro Alves, estudava um pouquinho de piano, fazia flores de marzipã...
– O que é marzipã?
– Ah, marzipã é um doce muito caro, que ninguém come mais, que não há dinheiro que chegue. . .
– E ela aprendia a enfeitar bolos, a fazer crochê com fios de cabelo...
– Com fios de cabelo?
– Pois é, naquele reino era muito bonito ter prendas...
– Prendas?
– É, dotes...
– Dotes?
– É, saber fazer coisas que não servem pra nada, que é pra todos saberem que a pessoa é rica... Só faz as coisas pra se distrair... Se uma pessoa estuda datilografia, por exemplo, tá na cara que ela vai trabalhar em alguma coisa... Ou se ela entra num curso de medicina, de engenharia, de confecção industrial... aí está claro que ela quer trabalhar, ganhar a vida, ganhando dinheiro, sacou? Agora, se ela estuda frivolitê, por exemplo, tá na cara que ela está só se distraindo, deixando o tempo passar...
– E pra que uma pessoa quer deixar o tempo passar?
– Bom, as pessoas em geral eu não sei. Agora, a princesa da nossa história estava deixando o tempo passar que é pra esperar um príncipe encantado que vinha derrotar o dragão e casar com ela. Até estava deixando o cabelo crescer pra fazer que nem a Rapunzel, que jogava as tranças para o príncipe subir por elas.
Aí chegou o dia do príncipe sair para correr mundo. Ele não quis levar muita bagagem, para não ficar pesado. Saiu de madrugada, bem cedinho. E lá se foi correndo, dando cotoveladas, cuspindo no olho de quem passasse perto. Passou pelo dragão, escalou o muro do palácio, caiu do outro lado, nadou pelo fosso, subiu na outra margem e se foi pelo mundo, procurando não sei bem o quê, mas procurando firme.
– E a princesa?
– A princesa continuava esperando.
E tanto esperou que um dia apareceu, em cima do muro do castelo, um príncipe com cara de encantado que desceu por umas cordas, deu umas cutucadas no dragão, montou uma bicicleta desmontável que ele tinha trazido, atravessou o pátio inteirinho e subiu pelas tranças da princesa, que estava fazendo força para parecer graciosa com aquele marmanjão subindo pelas tranças dela acima. No que o príncipe chegou lá em cima já foi fazendo uns salamaleques para a princesa e já foi perguntando se ela queria casar com ele.
Mas a princesa estava desapontada! Aquele não era o príncipe que ela estava esperando! Até que ele não era feio, tinha umas roupas bem bonitas, sinal que devia ser meio riquinho, mas era meio grosso, tinha um jeitão de quem achava que estava abafando, muito convencido!
A princesa torceu o nariz.
O pai e a mãe da princesa ficaram muito espantados, ainda quiseram consertar as coisas, disfarçar o nariz torto da princesa, que eles estavam achando o príncipe bem jeitoso... Afinal ele era o príncipe da Petrolândia, um lugar que tinha um óleo fedorento que todo mundo achava que um dia ia valer muito dinheiro...
Então a mãe da Linda Flor (a princesa se chamava Linda Flor, eu já contei?) chegou junto da filha, deu-lhe um cutucão disfarçado e disse com uma voz mais melosa que doce de coco:
– Filhinha, filhinha, vai fazer uma baba-de-moça pro moço, vai...
– Ai, mãe, não vou não, estou com preguiça.
– Que é isso, minha filha, você nunca, nunquinha na sua vida teve preguiça... Então vai fazer uns fiozinhos d'ovos pro moço ver como você é prendada...
– Ai, mãe, não vou não, não estou a fim de agradar esse moço. Acho ele muito chato...
A mãe mais o pai de Linda Flor ficaram brancos de susto... Afinal, se a filhinha deles não agradasse os moços que apareciam para salvá-Ia, como é que ela ia arranjar casamento? Então o pai virou fera:
– Anda logo, menina, vai preparar um vatapazinho pro moço. Já e já!
– Olha aqui, pai, eu até posso fazer vatapá, sarapatel, caruru, qualquer coisa, mas tire o cavalinho da chuva que com esse príncipe eu não vou casar.
A essa altura o príncipe também já estava tão cheio daquela princesa que foi embora e não voltou mais, para tristeza dos reis e grande alívio de Linda Flor.
E assim muitos príncipes vieram, muitos príncipes se foram e Linda Flor já nem jogava as tranças para eles subirem. Tinha posto uma escada na janela que era mais prático.
Para falar a verdade, com grande susto dos pais, Linda Flor tinha cortado os cabelos e estava usando um penteado esquisitíssimo copiado de povos longínquos da Africolândia.
E as roupas de Linda Flor? Ela não usava mais aqueles lindos vestidos de veludo com entremeios de renda e beiradas de arminho que a gente vê nas figuras dos contos de fadas.
Ela agora estava usando... calças compridas! - E pra que ela usava calças compridas?
– Ah, não vou dizer ainda pra não perder a graça.
Ela usava calças compridas, que nem o príncipe. E estava diferente, não sei, queimada de sol, logo ela que era tão branquinha!
Os professores estavam se queixando que ela não ia mais às aulas de craquelê, nem às aulas de etiqueta, nem às aulas de minueto. E a corte inteira se espantava com a modificação da princesa, que deu para rir alto e que até se intrometia nas conversas dos mais velhos. Até nas conversas dos ministros sobre política ela deu para dar palpites! E não queria mais ser chamada de Linda Flor.
– Que nome mais careta! Quero que me chamem de Teca, de Zaba, de Mari, um nome mais moderninho!
E então um dia todo mundo no palácio levou um grande susto.
No meio da manhã, na hora em que princesas delicadas ainda estão dormindo, ouviu-se o maior berro."
– Berro?
– É, berro! E berro de princesa!
– Que foi que aconteceu? – perguntava um. – Será que a princesa está em perigo? perguntava outro.
– Não parece perigo, não! – dizia um terceiro.– Ela está berrando igualzinho como berrava o príncipe...
E os berros continuavam, cada vez mais fortes. E todos correram na direção de onde vinham os berros e que era lá em cima do castelo.
O primeiro que chegou foi o rei.
E ficou espantadíssimo quando viu a princesa, correndo de um lado para o outro, de espada na mão, dando aqueles gritos medonhos que ele tinha ouvido lá do outro lado do castelo:
– Mas o que é isso? Que história é essa? O que é que está acontecendo?
A princesa parou de correr, enxugou a testa com as costas da mão e sorriu, muito contente:
– Ah, pai, nem queira saber! Que barato!
Estou tendo umas aulas com os instrutores de meu irmão. Estou aprendendo esgrima, estou aprendendo a correr, estou aprendendo berro...
A rainha, que já vinha chegando, parou horrorizada:
– Aprendendo berro?
E a rainha desmaiou ali mesmo, mas ninguém se incomodou muito, porque a rainha adorava desmaiar. Aliás, ela vivia dizendo que a princesa precisava tomar umas aulas de desmaio, que era muito útil desmaiar nas horas certas.
E a princesa continuou a explicar:
– Pois é, estou aprendendo tudo que é preciso para poder sair deste castelo e correr mundo como meu irmão.
– Correr mundo? - perguntou o rei quase desmaiando também. Mas não desmaiou porque lembrou que homem não desmaia.
– Correr mundo? – perguntou a rainha, que já tinha acordado porque estava muito curiosa de ouvir as explicações da princesa.
– É isso mesmo, correr mundo! Eu estou muito cansada de ficar neste castelo esperando que um príncipe qualquer venha me salvar. Eu acho muito mais divertido sair correndo mundo como os príncipes fazem. E se eu tiver que casar com alguém, eu encontro por aí, que o mundo é bem grande e deve estar cheio de príncipes pra eu escolher.
– Mas minha filha – gaguejou a rainha onde é que já se viu? E os perigos? E os dragões? E as mulas-sem-cabeça?
– Pois é por causa dos perigos e dos dragões e das mulas-sem-cabeça que eu estou tomando aulas, que é pra me defender! Eu estou ótima nas cabeçadas e nos rabos-de-arraia. Só está faltando eu treinar um pouquinho pulos com vara e uns gritos de comando.
– Gritos de comando?
– Pois é, não adianta só a gente dar uns gritos. É preciso dar os gritos com convicção, quer dizer, com a confiança de que vai ser obedecido, senão não dá resultado. Quer ver?
– JÁ PRA BAIXO, CAMBADA!
No que a princesa gritou, todo mundo começou a descer as escadas correndo, na maior aflição.
E a princesa, satisfeita, apertou a mão do instrutor de berro.
– Os berros já estão no ponto, também ela disse.
O palácio ficou em polvorosa com a notícia.
Só se viam pessoas cochichando:
– Pois é como eu lhe digo. A princesa... – Estou lhe dizendo. A princesa...
– Sabe que a princesa...
E a princesa continuava com seus treinos, todos os dias, sem desanimar.
Até que um dia...
Chegou o dia da princesa sair para correr mundo.
Ela não quis levar muita bagagem, para não ficar pesada. Saiu de madrugada, bem cedinho. Passou pela porta da frente e lá se foi a princesa, correndo, passando rasteira, jogando pedras. Quando chegou perto do dragão deu três pulos, que ela tinha aprendido no balé, chegou perto do muro, deu um salto com vara, passou por cima da muralha, empurrou para a margem do fosso uma canoa que estava perto, remou com força e foi sair do outro lado. Pulou na margem, acenou para as pessoas que estavam olhando do castelo e se foi pelo mundo, procurando não sei o quê, mas procurando firme!
ROCHA, Ruth. Procurando firme. São Paulo: Ática, 1997
1.Era uma vez uma princesa que não era exatamente uma princesa de contos de fada. Considerando as informações da narrativa, aponte as características físicas e psicológicas dessa princesa.
2.O que, segundo o texto, causou tantas alterações no comportamento de Linda Flor?
3.Fica evidente no texto que alguém está contando a história de Linda Flor a alguém. Então, responda:
•Quais as reações do ouvinte ao tomar conhecimento da história?
•Além dos acontecimentos, o que mais chama a atenção do ouvinte nessa narrativa?
•Qual a variante lingüística empregada pelo narrador dessa história e por seu interlocutor? Transcreva um trecho que comprove sua resposta.
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